Foi há muito tempo, quando eles saíram do mar e eu tive que correr para as árvores, tive que me esconder num escuro sem tamanho. Foi muito tempo depois, quando um caminho passou a contornar a praia e eu saí para ver: agora eles também chegavam por terra, e os esconderijos começaram a escassear, se encolhendo, diminuindo. Foi quando as primeiras luzes brilharam nos postes curvados sobre o caminho. Foi quando a ressaca de 1921 levou parte do caminho e trouxe areia e mar para a porta das grandes casas. Eu ouvia tudo, debaixo das varandas. Foi quando caminhei junto àquela família, ventando as franjas das crianças pequenas, que sorriam maresia. Foi quando essas crianças já haviam crescido e passeavam, elegantes, sobre as pedrinhas ondeantes. Foi quando essas crianças envelheceram e morreram, uma delas foi o mar que levou, antes mesmo de envelhecer, na verdade. Ele olhava para o alto, buscando ar. Foi quando, com luvas de areia, toquei seu rosto pela última vez.

Guardo memórias entreouvidas em pequenos esquifes de mentira.  Deixo aqui uma lembrança, um souvenir. Lembre-se de mim. Lembre-se de nós, nós-outros.

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ponto cego de improviso

sobre escura

superfície

 

ontem

às quatro da manhã

desfiz uma palavra inteira

o erro me habita (inteiro):

por isso mesmo incompleto

sou de falhas

e impossibilidades

esquecimento e naufrágio

 

não existiria sem o peso

o tempo

a entropia

a gravidade

 

mãos ausentes

suspensas

por anzóis

Hoje inventei um ponto de bordado:

o ponto cego.

 

Nunca aprendi a bordar.

Sempre saía com os meninos:

pra rua, pro mato, pro mar.

"Luvas de areia" é feita com: luvas de areia, anzóis, veludo preto, texto, composição sonora em fones de ouvido, livro de artista, estante de partitura, moldura caixa com vidro anti-reflexo. Esteve na exposição TAL 013 Supernovas - paralela à ArtRio na Bhering, em 2013.