Que força é essa?
Dia desses, folheando um jornal, leio a história do fotógrafo europeu que registrou meninos de rua aqui no Rio, anos 90. Não conseguiu editar seu livro lá fora e, recentemente, bancou uma edição do próprio bolso e voltou ao Brasil em busca dos fotografados. De tantos, encontrou apenas uma menina, que cresceu, trabalhou, saiu das ruas, teve seus filhos. Todas as outras crianças estão mortas, presas ou desaparecidas. Suicidadas pela sociedade.
É triste constatar que isso me horroriza mas não surpreende nem um pouco. O que me surpreeende é saber que essa menina, que nasceu nas ruas e só não foi estuprada antes dos oito anos porque uma das irmãs a defendeu com uma facada no agressor, superou isso tudo, está fazendo o melhor que pode, tem otimismo e, pasmem, nunca roubou ou usou drogas. Que força é essa, menina?!
Ver gente julgando essas crianças sempre me deixou transbordando de raiva e tristeza. Cara pálida, se fosse você ali no lugar dela, o que faria? Teria a força que essa menina teve? Você que não dispensa (ou não dispensava) seu chopinho, seu beque, seu tequinho, seu comprimidinho, só pra relaxar, pra estimular a criatividade, pra aguentar a pressão, pra anestesiar suas dores existenciais, porque o psiquiatra receitou e hoje em dia é assim mesmo? Você que dá ataque e briga com meio mundo porque a impressora pifou na última hora e você tem que entregar o trabalho, porque acabou o ingresso do show incrível que queria ver, porque tá sem dinheiro pra roupa nova (e um armário cheio delas), porque a sua mulher não é a mulher que você queria e seu emprego ídem e você não tem coragem de mudar, porque engordou e finge que não liga mas queria mesmo é ser linda, paparicada e desejada por TO-DOS, porque o salto quebrou na frente do carinha x, porque o carinha y te deu o fora, porque a internet deu pau e você tem que se "informar" e fofocar, porque o twitter tá fora do ar? Faça-me o favor, cara pálida: que força é essa? Cadê? Mostra aí... Pois bem: engula sua fraqueza, seus porques e seus julgamentos, é o mínimo. Porque a verdade é que, geralmente, não fazemos mais que nossa medíocre e egoísta obrigação: ou menos, porque se tem tanta criança assim morrendo nas ruas, estamos fazendo menos.
Moro perto de uma "cracolândia" recentemente "regenerada" pela prefeitura. Pracinha iluminada e policiada, frequentada por várias crianças da comunidade (ou favela, como prefiram) que se pendura ali. Crianças brincando à noite, depois do colégio, o invés de um canto escuro com outras crianças jogadas no chão se acabando no crack. A poucos metros, alguns dos garotos esquálidos de olhos arregalados que não vão à escola continuam pedindo um troco, uma lata de leite, um salgado, um pacote de fraldas: tudo vira crack instantes depois. E sempre tem um menino novo, uma garota que em duas semanas perde vários quilos e o tico de sanidade que ainda restava no olhar. Outros que eu via sempre, sumiram. Nunca mais. Gostaria de saber que estão mudados, na reabilitação. Mas se antes do crack poucos sobreviviam nas ruas, o que você acha que acontece agora, cara pálida? Você se importa? Onde estão essas crianças? O que nós, mais ou menos caras pálidas, podemos fazer?
Vejo os moradores da comunidade e dos prédios de classe baixa, média e alta mais felizes na rua. É a maioria, "gente de bem", que trabalha e leva uma "vida honesta". Melhorou, não posso negar. Talvez a melhoria da rua impeça que algumas crianças que estão na escola e na pracinha caiam na desgraça do crack. Mas também não tenho como negar o amargo e a pontada que vem do que há de mesquinho e cego nessa "felicidade".

Leandra Lambert