Viver e amar intensamente, se atirar em paixões e dizer que são inevitáveis, mergulhar até as antípodas em busca de prazeres superlativos ou frívolos, de epifanias libertadoras ou enganosas. Liberação, descontrole, gozo, perigo. Um certo tom de romantismo maldito torna comum vincular tudo isso às delícias do excesso.
O excesso como conhecimento e pecado, direito à experimentação e ao prazer - e por isso louvado pelos que eram mais sábios que os chatérrimos carolas. "O caminho que leva ao Palácio da Sabedoria", segundo William Blake, mais conhecido ao ser citado por Jim Morrison do que realmente lido. Isso faz tempo - mil setecentos e lá vai bolinha no caso de Blake e anos sessenta do século passado no caso do Jim, tão bonito. Mas muito mudou, mesmo que seja comum agirmos como se pouco tivesse mudado: foi rápido demais. Muitos de nossos desejos, excessos e erros permanecem humanos, tem sua vida, sua beleza torta; outros, nem tanto.
Aquelas palavras ou atitudes que escaparam, ficaram enormes e grotescas, deixando alguém amado ferido, tornando um amor não realizado, transformando uma discussão amigável em inimizade; o olhar defensivo ou indiferente que traiu um momento de fraqueza e medo na hora exata em que você devia provar sua força, coragem, comprometimento; o drink a mais que se multiplicou e fez uma noite festiva acabar em drama, doença e tragédia. Quem não conhece a dor desses pequenos excessos, desses sutis descomedimentos que acabam tendo consequências tão mais vastas e difíceis de suportar do que podíamos supor a princípio?
Isso para nós, pessoas mais ou menos comuns ou estranhas - já os que levam muito a sério papéis mais heróicos na vida podem se lamentar de "quando a arrogância de uma vitória depois traçou um labirinto de erros, quedas e humilhações".
Todos esses excessos, dos grandes erros aos amores exagerados, são repletos de uma dinâmica caótica muito viva. Encantam: bonitos se vistos de longe, na perspectiva de um observador fascinado com tais forças e narrativas; dolorosos e deliciosos no nosso corpo, na nossa humana experiência pessoal.
Mas há outro tipo de excesso que se instalou como parasita entre nós, em nosso modo de vida. Pouco humano - no sentido de pouco afeito ou mesmo contrário à nossos afetos mais elementares - e de estética vazia e replicante. Confunde-se com o anterior conceito de excesso, prometendo suas mesmas emoções e iluminações - e jamais cumprindo-as a contento. Desejos fabricados e clonados.
Vivemos uma era que instigou, estimulou tais desmedidas. Excesso de consumo desenfreado e insustentável, de trabalho sem sentido (para maior consumo), de informação rasa que se alastra como praga, de velocidade despropositada, de sexo quantitativo, mecânico, distante e desleixado, de comida porca e de magreza cruel, de anestesias vãs para as dores da alma e do corpo. Profusão de infovias e asfaltos que levam a lugar algum, valores agregados desagregadores do espírito, relacionamentos fechados ao outro, o tráfico e a fome das tarjas pretas, das pedras e das poeiras brancas, pornografia enfadonha de bonecos desesperados e beijos numerados de silicone, infindáveis plásticos, couros, carros, óleos e pneus, carnes gordas nas frigideiras ou nas barrigas, travesseirinhos de gordura reais ou imaginários contra os quais frequentemente se luta usando aspiradores e bisturis ou fazendo gestos ridiculamente histéricos sobre um par de tênis caros e horrendos, em frente a espelhos que distorcem muito mais do que percebemos. Sempre defasados, incompletos e no tamanho errado. Querendo mais.
Apenas começamos a colher a falta, a negação, a crise, um ajuste forçado. Necessário. É hora do "menos".
Agora a temperança, a medida e o equilíbrio deixaram de ser chatices de hipócritas medrosos que desejavam ser virtuosos apenas para se livrarem de castigos terrenos ou celestiais. Tais qualidades tornaram-se mais trangressoras que certos discursos do excessivo. "Não se sabe o que é suficiente até que se conheça o que é mais que suficiente", já disse o mesmo William Blake dos excessos louváveis. Não existe aí uma medida até para o excesso? Uma medida que está no saber?
O excesso já foi amante da liberdade. Hoje, pode ser legítimo esposo da escravidão.